quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Vampiro de mim

Um céu, um ser, um solo...
cidade quase cemiterial.
Entre as nuvens esparsas e negras
lua cheia, chuva e neblina
um vampiro a me seguir.
Entro, saio, corro, páro, pulo, sacolejo...
viro, danço, passo por avenidas e becos.
No chão molhado procuro a minha face
desprendida num corpo etéreo.
Multidão de silhuetas onde circulam meu fluido vital
vão, vem e se cruzam, mas, para onde vão?
São elas meus pensamentos, caminhos do bem ou do mal?
De repente, numa esquina, uma única sombra.
Comigo só solidão.
Vou devagar... me arrastando no muro enquanto a sombra vai crescendo mais e mais...
Num monte de lixo, atrás do poste, um pedaço de madeira...
Tento pegar sem nenhum ruído...e...quando me levanto,
uma gargalhada solta e me encara...
Num súbito impulso, cravo a estaca em seu peito!
...e ao ouvir ecoar o grito da dor vizinha,
só então percebi que a sombra que matei era minha!
Sou eu, vampiro de mim,
uma alma triste e vazia...
na cidade deserta... que nunca tem
FIM!

O ascensorista

Profissão estúpida!!!... eu diria há algum tempo atrás. Percebo agora que não existem profissões estúpidas, mas pessoas estúpidas. A maioria é.

Vi hoje um ascensorista no Hospital dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo. Que graça teria uma profissão em que se passa o dia sentado, apertando botões, subindo e descendo de um andar para o outro? – Nenhuma, não é? Mas veja só:

- Bom dia, gente! Vamos entrar, vamos entrar, vamos entrar! Cadeiras de rodas e muletas, primeiro! (e o elevador começou a encher...).
- Vamos, gente, coração de mãe sempre cabe mais um! Tem muitas mães aqui? Vamos dar uma apertadinha! Ô, velho safado, não é essa apertadinha, não!!! (elevador lotado,2º andar).
- Pessoal, mais uma mocinha quer entrar, vamos puxar ela pra dentro? (...era uma senhora de uns 70 anos!)
- Obrigada pelo “mocinha”! (com um sorriso no rosto).
Disse uma moça:
- O Senhor é engraçado, só pode ser ator do Casseta e Planeta!
- Xiii, moça, neste planeta estou é cassetado! (risos no elevador... 3º andar, e eu desci com a minha mãe.)
Mas vejam, só foram necessários três andares para que este homem se tornasse imortal. Ele não era médico, mas tinha a receita da alegria e a certeza de que estava fazendo o seu melhor. Este é o lado belo da vida. Nesse hospital, a cura começou no elevador...
Este homem não era um ascensorista, mas um elevador de almas!

Amor e morte

Sereno na madrugada.
Gotas caem pesadas.
O orvalho é o choro da flor despedaçada.

No paladar a lágrima salgada.
Salgada.
Salgada como as vagas do oceano...

Nele quero nadar...
Nadar e me afogar.
Já não existe a lua de prata.

Nasce o sol... sou ave ferida na alvorada!
O vento carregou o pólen que daria o fruto.
O tempo mata o sentimento, mata o amor...
Então mata tudo!

Aquele homem...

Há certas coisas na vida que não têm explicações, simplesmente acontecem. A história que segue é uma delas.


Era meio dia e meia, do mês de abril. Eu estava indo para a escola onde trabalho como professora de Língua Portuguesa, quando um homem, do outro lado da rua, parou-me:
- Ei, você! Dá pra me ajudar a atravessar a rua?
Fiquei um tanto quanto assustada, pois o homem, embora tivesse deficiência nas pernas e usasse uma bengala, era perfeitamente capaz de atravessar a rua sozinho, mesmo porque, a rua era pequena e não era movimentada. Olhei então para sua cintura, a fim de saber se portava alguma arma. Depois olhei-o todo: era um homem bastante magro, de pele bronzeada de sol, cabelos negros e usava bigode. Nunca fui boa para idades, mas aparentou-me uns quarenta e poucos anos. Como não visse algo que pudesse amedrontar-me, aproximei-me dele e estendi-lhe o braço, a fim de que ele se apoiasse. Nisso, ele parou e ficou olhando alguns instantes no fundo dos meus olhos. Depois segurou meu braço e atravessamos a rua. Passavam crianças indo à escola e alguns homens e mulheres que trabalhavam numa fábrica em frente à rua. Observaram a cena demoradamente. Quando chegamos do outro lado da rua, ele olhou-me novamente nos olhos e disse:
- Se eu tivesse um dia que me casar, casaria com uma pessoa como você. Você é uma moça muito bonita!
Quando disse-me isso, coloquei imediatamente a mão na cabeça e pensei que ele fosse um safado, um metido a conquistador, um daqueles homens que encontramos aos montes pelas ruas. Pensei até que estivesse embriagado. Porém, a firmeza com que olhava-me e mantia-se na sua aleijadez em pé impressionou-me. Ele perguntou:
- Você acredita no amor eterno?. A pergunta pegou-me de supetão e até comoveu-me. Demorei para responder. Buscava uma resposta, no mínimo, sensata.
- Depende. Ele ficou meio bravo:
- Como depende? Ou acredita ou não acredita!
- Depende do que se entende por eternidade e também de quem se ama.
- Por que de quem se ama?
- Porque às vezes acontece de termos um sentimento tão forte, tão bonito por uma pessoa e ela maltrata tanto este sentimento que ele vai se tornando dor e sumindo aos poucos. Muitos já compararam o amor a uma flor, que se cultiva. Além disso, eu o comparo a uma flor, que é frágil e de existência efêmera, cuja efemeridade depende do cultivo.
Ele disse algumas palavras em latim, outras em francês e depois:
- Ah, então você é igual ao Vinícius que diz para o amor “que seja infinito enquanto dure”?
Assustei-me dessa vez, pois citara um verso do meu poema favorito “Soneto de fidelidade”, de Vinícius de Moraes. Respondi:
- É. Aí ele disse, meio que censurando-me:
- Uma pessoa tão jovem e bonita como você não acredita em amor eterno?
- Já me apaixonei e acreditei que também amava, mas percebi que só o amor que sentia não bastava. A sociedade exige regras e conveniências e o amor é livre, não sobrevive à regras. Então ele, num tom profundo, disse-me:
- Pois saiba que eu estou cansado de amores pequenos e só quero amar se o amor que tiver for puro e eterno, porque esse é o amor que vale. Disse-me depois que tinha 51 anos.

Como eu estava com pressa para chegar à escola, pedi licença para retirar-me. Ele disse-me:
- Vá, o mundo continua suas buscas e eu a minha.

Fui, pensando naquele homem que antes causara-me medo e receio e agora curiosidade. Em outra situação, passaria horas a conversar com ele. Estou acostumada a ser parada na rua por alguém que pergunta as horas, pede informações, que pede dinheiro ou que queira vender alguma coisa, mas nunca tinha sido parada por alguém que...

...exatamente! Aquele homem, que era fisicamente debilitado, tinha a consciência sã e um estado de alma invejável. E, embora parecesse loucura, acreditava no amor puro e eterno e entre tantas coisas que acontecem na correria do dia-a-dia, nessa neurose que assombra as pessoas, que as fazem deixar de viver suas próprias vidas e não perceber as coisas que significam,

...aquele homem parou-me para falar de amor!

Estes versos são retalhos...

Aqui choro minhas dores,
minhas mágoas,
minhas mentiras,
minhas flores.

Abro o compasso,
fecho o círculo.
Abro a discussão,
desabo o circo.

As palavras se espalham
como cartas de baralho.
Nas entrelinhas, me embaraço.
Sou uma nave perdida no espaço.

Há uma barata tonta no assoalho,
pés descalços no cascalho.
Estes versos são retalhos,
retalhos de um coração...

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Por que a poesia em tempos de indigência?

O Essencial

Alta tecnologia. Velocidade. Informação. Indigência!
Homens por robôs, prosas por chats, cartas por e.mails, o contato humano sendo perdido dia-a-dia.
Uma informação acaba de ser dada e, dentro de segundos, ela já é velha. Mal há tempo para assimilação. O mundo é engrenagem. Já não existe noite e dia. Sabe aquele dia de 72 horas que de vez em quando todo mundo pede a Deus? Quem disse que Ele não ouviu nossas súplicas? Ele está aí, em toda nossa tecnologia, nós é que não o acompanhamos!
Existe uma correria, uma porção de regras a serem obedecidas do abrir ao fechar dos olhos, a violência por dinheiro, por fama, por nada. Uma neurose, decorrente do medo desse mundo, da pressa e da falta de confiança que acaba sendo gerada assombra as pessoas e fazem-nas agir como se existisse em torno delas uma camada que as separam do resto do mundo e que, embora pareçam livres, estão presas, algo que fazem-nas deixar de viver suas próprias vidas. Livres porque perante à lei e à sociedade assim somos reconhecidos, porém presos em nossas vontades, individualidades e desejos, que em meio a tudo isso, acabam sendo sufocados.
Falo de pessoas indigentes em tempos de indigência, de pessoas que vivem na mais completa pobreza, na miséria, de pessoas a quem falta o essencial; e o essencial não são roupas, comidas, bebidas, moradia, assistência médica: isso é condição de vida. O essencial são os valores humanos: a amizade, o carinho, o amor, a gratidão, o companheirismo, a solidariedade, a religiosidade, o respeito, a cidadania, a dignidade, a honra.
Na medida em que perde seus valores, o ser humano perde também sua identidade, mas através da poesia revela os gritos e desejos mais profundos de sua alma. Eis que a poesia é mágica: transforma o real no imaginário e o imaginário no fantástico e retrata cada ser humano, único em idéias e sentimentos... sentimentos esses que em muitas vezes são de dores, de decepções, de desilusões, de desesperança, de fracasso, sentimentos vazios... mas também podemos falar de sentimentos cheios, que transbordam, que contagiam, que rejuvenescem, como por exemplo explicar o mistério de um dia de inverno, o lirismo de uma manhã de primavera, a ternura de um entardecer de outono e as expectativas de uma noite enluarada de verão, da emoção de um casal que observa o brilho ofuscante das luzes elétricas numa noite de garoa, do contentamento ao rever alguém muito querido e matar a saudade, da alegria proporcionada por um aperto de mão ao se fazer as pazes, na intensidade do sono pesado de um menino que brincou o dia inteiro, no contentamento de um homem que chega exausto do trabalho e encontra seu cão a receber-lhe no portão e a balançar-lhe o rabo, na satisfação que um pai de família tem em ver sua mesa farta.
A poesia é a esperança do Homem e existe para que perceba as coisas que realmente significam, para guiá-los de volta aos seus valores, pois somente esse resgate será capaz de transcender a barreira dos olhos do Homem e chegar ao seu coração. Sem a poesia e sem esses valores, a cada segundo assassinaremos a esperança daqueles que ainda acreditam que entre trovas e versos, uma caneta e um papel, um monitor e um teclado existam palavras, frases ou histórias que sirvam de conforto e alimento para fazê-los fugir da condição de indigentes.

Rita Bordoni