terça-feira, 1 de março de 2011

Os Sertões (Euclides da Cunha)

Texto adaptado por Rita Bordoni


O conhecimento da realidade social brasileira passa por uma obra obrigatória: Os Sertões, de Euclides da Cunha. Quase todo escrito em São José do Rio Pardo (pelo menos 75%), foi, no dizer do autor, "escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante". Publicado em 1902, ano de sua primeira edição, cinco anos após a campanha de Canudos, o livro dá início ao que se chama de Pré-Modernismo na literatura brasileira, revelando, às vezes com crueldade e certo pessimismo, o contraste cultural entre os dois "Brasis": o do sertão e o do litoral.
Todos os importantes questionamentos e as grandes formulações sociológicas, antropológicas, históricas e políticas para compreender o Brasil, antes e depois da República, tiveram seu embrião nas páginas de Os Sertões. A obra é um é um misto de literatura com relato histórico e jornalístico. Em 1897, Euclides da Cunha havia sido enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo, como correspondente, ao norte da Bahia para fazer a cobertura do conflito no arraial de Canudos, liderado por Antônio Conselheiro. Com base no que viu e no que pesquisou depois, escreveu seu livro, que demonstra, ainda, um admirável estudo da terra e do homem do sertão nordestino, das condições de vida do sertanejo, da sua resistência e capacidade, de acordo com a visão do autor. É uma resposta realista e pessimista à visão ufanista do Brasil, simbolizada pela obra do Conde Afonso Celso Porque me Ufano do Meu País.
N'Os Sertões, Euclides se mostra como cientista e artista; o cientista é o engenheiro, o bacharel em matemática, ciências físicas e naturais; o artista é o poeta, o sonhador, o estudioso sensível, "que se lançou à Escola da Praia-Vermelha". Como cientista, ele nos informa com a precisão de um sábio versátil; como artista, ele nos convence e nos encanta com suas palavras transformadas em cores, formas, movimentos, sentimentos...
Lima Barreto, por exemplo, escrevia e descrevia um Brasil litorâneo, com todas as dicotomias citadinas. Euclides centrou o seu foco no interior, no momento em que as contradições da república, recém implantada no Brasil, ressaltavam mais gravemente. A Guerra de Canudos não foi o primeiro nem o último episódio de massacre da sociedade afluente sobre uma tentativa de construção de um projeto societário diferente. Mas foi o único descrito com tanta profundeza de detalhes por parte de uma testemunha ocular dos fatos. Ele foi o único jornalista que atentou para a valentia dos jagunços. É uma obra difícil: vocabulário incomum, assuntos áridos, temas científicos, necessitando-se do dicionário e de bibliografia paralela. A cada leitura de Os Sertões descobrimos coisas novas, que passaram despercebidas na análise anterior.
A transição de valores tradicionais para modernos está na denúncia que faz da realidade brasileira, até então acostumada a retratar um Peri, uma Iracema, um gaúcho, ícones do nosso Romantismo. Evidencia, pela primeira vez em nossa literatura, os traços e condições reais do sertanejo, do jagunço; "a sub-raça" que habita o nordeste brasileiro; o herói determinista que resiste à tragédia de seu destino, disfarçando de resignação o desespero diante da fatalidade. Essa ruptura de visão de mundo gera também um rompimento no plano linguístico. A objetividade científica na abordagem de um problema leva o autor a buscar termos precisos e, nesta escolha, sua linguagem torna-se especializada e, por isso, às vezes difícil, mas que se justifica pelo objetivo de tornar exata a comunicação das idéias.
Da primeira à última página, Os Sertões é uma obra que incomoda. Ele foi escrito exatamente para isso. Para instigar, provocar a pesquisa e estimular a procura da verdade. É um livro contra o conformismo, de idéias e soluções, de questionamentos e proposições ousadas. Já é lugar comum dizer que algumas de suas conceituações científicas não resistiram à evolução. Contém os vícios ou distorções típicos da época. É uma narrativa da insurreição de um grupo de fanáticos religiosos e não só descreve a sociedade, mas também a geografia, geologia, e zoologia plana do sertão brasileiro. Com seu apurado estilo jornalístico-épico, traça um retrato dos elementos que compõem a guerra de Canudos: A Terra, O Homem e A Luta. A descrição minuciosa das condições geográficas e climáticas do sertão, de sua formação social: o sertanejo, o jagunço, o líder espiritual, e do conflito entre essa sociedade e a urbana, mostra-nos um Euclides cientificista, historicista e naturalista que rompe com o imperialismo literário da época e inicia uma análise científica em prol dos aspectos mais importantes da sociedade brasileira.


O MOMENTO

Com a Revolução Industrial iniciada na Europa no século XVIII, toda a civilização entrava em uma nova fase caracterizada pela utilização do aço, do petróleo e da eletricidade. O capitalismo se estrutura em moldes modernos com o surgimento de grandes complexos industriais. Ao mesmo tempo o avanço científico leva a novas descobertas nos campos da Física e da Química.
A chamada 2ª Revolução Industrial cria uma demanda por matéria-prima e mercado consumidor; é o imperialismo em ação. As influências das potências européias sobre os países de baixa renda se fortificam neste novo quadro.
A crise de 1873, que provoca a falência de investidores nas metrópoles européias devido ao excesso de produção e/ou à escassez de mercado consumidor, aumenta o interesse de tais potências por países que já possuem alguma dependência econômica ou política (por exemplo a Austrália, ex-colônia da Inglaterra e os países da América Latina em geral). Essa forma de dependência o historiador Nicolau Sevcenko chamou de indirect rule:


“...as formas das relações que se estabeleceram entre as nações periféricas ao desenvolvimento industrial e os centros econômicos europeus, modeladas pela indirect rule do novo imperialismo, foram de natureza a dissolver-lhe as peculiaridades arcaicas e harmonizá-las com um padrão de homogeneidade internacional sintonizado com os modelos das matrizes do velho mundo.” (SEVCENKO, 1981, p. 32)


Foi através desta “regra indireta” que os centros capitalistas europeus estabeleceram seus padrões de vida como padrões universais, atingindo principalmente suas áreas de influência da periferia do sistema. Os avanços tecnológicos e científicos também dão margem à posturas ideológicas como o Positivismo de Auguste Comte e o Socialismo Científico de Marx e Engels, que define o modo de produção da vida material como agente condicionador do processo de vida social, político e intelectual em geral. O Socialismo Científico era assim chamado porque não procurava construir abstratamente uma sociedade ideal, mas, baseando-se na análise das realidades econômicas, da evolução histórica e do capitalismo, formula leis e princípios determinantes da História em direção a uma sociedade sem classes e igualitária. O Evolucionismo de Charles Darwin também é incorporado neste quadro; em seu livro A Origem das Espécies, de 1859, Darwin expõe seus estudos sobre a evolução das espécies pelo processo de seleção natural, negando, portanto, a origem divina defendida pelo Cristianismo.
Com a expansão do capitalismo, difundiram-se também estas idéias nascidas na Europa, o abalo desta influência sobre as sociedades tradicionais foi gritante, especialmente em países da periferia do sistema, como a Argélia com o Levante Argelino de 1871, o Egito com o Movimento Nacional Egípcio de 1879-1882, e o Brasil com a Guerra do Paraguai de 1864-1870, que abalou os ideais conservadores.
O Brasil do final do século XIX foi marcado por inúmeras agitações sociais, desde movimentos separatistas como a Confederação do Equador, agitações abolicionistas, a própria abolição e até a República. O maior centro populacional do país, o Rio de Janeiro, também era considerado um grande centro comercial por intermediar os recursos da economia cafeeira, a capital inicia o século XX em uma situação realmente excepcional. A cidade era um espaço de confluência cultural e econômica que se comunicava com todo o país e acumulava recursos no comércio, nas finanças e já também nas aplicações industriais.
Ao mesmo tempo, com o processo de abolição e com a vinda de imigrantes, a cidade passava por uma superlotação, que demandava capital móvel para fazer o pagamento dos trabalhadores, agora livres. O então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, dá início a um processo de incentivo às atividades na bolsa de valores, foi o chamado Encilhamento. Este processo causou uma confusão maior ainda na cidade, pois fortunas mudavam de mãos, dizia-se que “o rico de hoje era o tintureiro de ontem”, não se sabia mais quem possuía poder político ou econômico. Adiciona-se a essa confusão, a enorme e sempre crescente população da cidade que passou a se instalar em casarões formando cortiços e verdadeiros “antros de promiscuidade”.
Sob a influência das ideologias européias, o Estado brasileiro inicia o processo de Regeneração do Rio de Janeiro, que tem como objetivo “higienizar” a cidade, mandando a população pobre para a periferia (dando origem às favelas), e procurando construir uma imagem moderna para a capital do país. A Regeneração foi financiada por investidores estrangeiros que se aproveitavam da indirec rule, característica dominante no país. Além disso a modernização da cidade facilitaria o espaço de fluxo de matéria-prima aos portos brasileiros, e, assim, facilitaria a ação do imperialismo.
Na República, “confrontavam-se” Liberais, que se representavam basicamente pela elite paulista influenciada pelo cosmopolitismo progressista internacional e os Conservadores representados pela vanguarda republicana, positivista e militar, influenciada por estigmas de intolerância e isolamento. Na prática, os ideais destes dois grupos são indiferenciáveis: “nada mais conservador do que um liberal no poder”, a República dos Conselheiros se dava então, com o revezamento da gestão das duas classes. O texto de Machado de Assis, Esaú e Jacó ilustra bem a “política de acordos” característica marcante no Brasil de então. É neste complexo quadro que se dá a formação de Euclides da Cunha, que, como muitos de seus contemporâneos sofreu as influências desta sociedade caótica e das ideologias vindas de além mar.


O CONTEXTO

Para que consigamos compreender a obra de Euclides da Cunha de uma forma mais completa é estritamente necessário que façamos um breve parênteses e olhemos quais eram essas “tão famosas” idéias cientificistas, positivistas e deterministas que influenciaram o autor, ou seja: vamos buscar as fontes nas quais Euclides da Cunha “bebeu”. Tentar enquadrá-lo no contexto histórico-intelectual em que viveu.
Antes de mais nada, é importante relembrarmos que o continente Americano, mais conhecido como Novo Mundo, sempre povoou o imaginário europeu. Exemplos clássicos, são o mito do “bom Selvagem” de Rousseau (uma espécie de herança dos ideais da Revolução Francesa), onde o autor defendia a maior perfectibilidade do homem americano (nativo), por ter se conservado no seu estado natural. “Outro exemplo são as idéias de Buffon e De Pauw, que, contrariamente a Rousseau, viam os americanos como degradados, imaturos e decaídos”. (SCHWARCZ, 199, p.45)
Mas tal discussão não se finda no séc. XVIII. No século seguinte ela ganha ainda mais amplitude, entrando no campo de ciência - que na época ganha o status de ser a única e verdadeira forma de se ver e pensar o mundo. E dentro desse contexto cientificistas, “George Cuvier introduz o termo raça - mostrando a existência da herança de caracteres físicos permanentes entre os vários grupos humanos” (SCHWARCZ, 1993, p.47) - que, consequentemente irá se confrontar com os ideais igualitários da Revolução Francesa, principalmente porque, a partir de então, o termo raça, estará vinculado a outro: cidadania.
Ao ser legitimada, algumas das principais questões que a ciência irá estudar são a origem e diversidade da humanidade - tendo sempre em vista uma resposta absoluta e verdadeira. E o principal debate sobre essa questão se dará entre os monogenistas e poligenistas.


Enquanto os primeiros consideravam que todo homem tinha a mesma origem e que as diferenças entre eles era resultado de uma maior ou menor proximidade do Éden (teoria difundida pela Igreja Cristã), os poligenistas, que baseados em recentes estudos de cunho biológico, acreditavam que haviam diversos núcleos de produção correspondentes aos diferentes grupos humanos. (SCHWARCZ, 1993, p. 47)


Conseqüentes a esse debate, surgiram no séc. XIX disciplinas e sociedades não só divergentes como rivais. Exemplos claros será o surgimento de antropologia criminal, que considerava que a criminalidade era algo genético, a frenologia e a antropometria, que calculavam a capacidade humana de acordo com o tamanho do cérebro de indivíduo estudado dos diferentes grupos humanos, a craniologia, estudo do crânio, dentre outros.
Entretanto o debate tomará novo fôlego com a publicação do livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859. A partir de então o termo raça ultrapassará o campo da biologia, se estendendo às discussões culturais e políticas, além de imprimir o conceito de evolução às duas visões descritas acima, que muitas vezes irão desvirtuar ou “adaptar” as teorias darwinistas no que lhes fosse mais conveniente.
Os adeptos do poligenismo são os que melhor realizam essa “adaptação” das teorias de Darwin e acabam tendo seus ideais mais difundidos em relação ao seus rivais monogenistas (é importante frisar que nesse mesmo momento os dogmas da Igreja estavam sendo questionados pelos cientistas). Exemplos disso são a sociologia evolutiva de Spencer e a história determinista de Buckle e até mesmo o sentimento do “Imperialismo Europeu” que se instala nesse momento.
A espécie humana passa a ser tratada como gênero humano e suas diferenças culturais são classificadas como diferenças entre espécies: o Homem é dividido e hierarquizado por suas diferenças; e quanto mais longe uma “espécie” se manter da outra melhor para todos. Mas surge um problema: o que fazer então com os grupos miscigenados? A maior parte dos estudiosos e cientistas europeus e norte americanos como Broca, Gobineau e Le Bom, consideravam a miscigenação um erro, uma quebra das leis naturais, uma subversão do sistema. Segundo Lilia M. Schwarcz: “Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a diferença fundamental entre as raças e personificavam a ‘degeneração’ que poderia advir do cruzamento de espécies diversas”. (SCHWARCZ, 1993, p. 56)
Frente a todo esse impacto causado pela publicação de Charles Darwin, outras disciplinas - ainda vinculadas às duas visões sobre a origem e diferença do Homem - irão surgir. Dentre elas, algumas se destacam: a Antropologia cultural ou Etnologia Social que restitui a idéia de que a humanidade tinha apenas uma origem e sua diferença era proveniente do processo evolutivo que ela estava fadada a passar e tinha como seus principais defensores: Morgan, Tylor e Frazer, chamada de escola evolucionista.
Numa perspectiva mais vinculada ao poligenismo, aparece a escola determinista geográfica de Ratzel e Buckle que afirmavam que o desenvolvimento ou não de uma nação estava totalmente condicionada pelo meio físico. Houve também outra escola determinista conhecida como “darwinismo social” ou “teoria das raças”, que considerava a miscigenação algo negativo, já que não acreditava que as características adquiridas não eram transmitidas, ou seja: as raças eram imutáveis. Tal escola acreditava na existência de três raças bem distantes, o que invalidava a mestiçagem. O mundo dividido culturalmente era conseqüência da divisão de raças, e havia a raça superior. Muitos autores acreditavam nesses ideais, como: Le Bom, que achava que o “gênero” humano compreendia espécies de diferentes origens; Taine, que considerava o indivíduo resultante direto de seu grupo construtor e que raça e nação são sinônimos; Renase, que acreditava na existência e hierarquização das três raças; Gobineau, que afirmava que o que resultara da mistura era sempre um dano.(SCHWARCZ, 1993, p.56)
Essas premissas da escola determinista, principalmente a que defendia a existência de uma raça superior, serviram de base para um movimento que existe até hoje: a Eugenia, que acreditava que só haveria progresso nas sociedades puras, apenas uma raça estava fadada à perfectibilidade, a raça ariana e a humanidade estava dividida em espécies: a miscigenação se torna algo irracional, contra todas as “leis naturais”. A Europa e os E.U.A. . difundiram essas idéias pelo mundo, e elas irão influenciar escritores e pensadores de toda parte.
Os europeus acreditavam que compunham um grupo humano puro, livre de hibridização, muito mais perto da perfectibilidade e justamente por isso era o responsável pela civilização dos demais grupos - argumento que justifica e legitima tanto a colonização americana como o “Imperialismo Europeu”, o fardo do homem branco.
Já os norte americanos, mesmo tendo sido colônias da Europa, comprovaram seu desenvolvimento, principalmente por terem evitado a miscigenação entre o branco dominador e o negro escravo. E tudo o que foi dito acima serve de justificativa para que o debate da mestiçagem se dê de forma muito menos complexa nesses lugares. No Brasil, como no restante da América Latina, o mesmo não ocorre, a miscigenação é um fato. E mais do que um fato, ela vai se tornar um obstáculo, quando estudiosos e até mesmo cientistas (tanto nacionais como estrangeiros) forem analisar o território brasileiro em busca de uma identidade nacional. O Brasil se tornara uma espécie de laboratório vivo, onde cientistas procuraram comprovar na prática o que compuseram, e onde “ilustrados” brasileiros buscaram desesperadamente uma unidade, uma homogeneidade para definir o povo brasileiro, tendo como principal fonte de estudo, a ciência do séc. XIX, descrita acima.



BREVE HISTÓRICO DE CANUDOS


Na segunda metade do século XIX houve por um lado uma grave crise no sertão nordestino e, por outro, um estímulo do Vaticano a um revivescer da fé católica, com o apoio institucional da Igreja, vários leigos eram levados a aproximar-se mais da religião e, dentro dos rudimentos de sua capacidade de compreensão, assim como daquela gente simples a quem se dirigiam, a mensagem evangélica era retransmitida.
Neste contexto surgem pregadores os mais diversos, dentre os quais Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, “um gnóstico bronco”, “um heresiarca do século II em plena idade moderna”, “um monstro”, segundo ajuíza Euclides da Cunha em Os Sertões. Um homem do povo que, falando na língua do povo, dizia o que o povo queria e precisava ouvir e fazia o máximo, dentro de sua consciência possível, para suplantar o caos em seu tempo pelo menos até onde chegava sua esfera de influência.
Conglomerando milhares de adeptos ao seu redor, tentando construir um projeto civilizatório diferente, atraiu a si a fúria dos “coronéis” das redondezas privados da mão-de-obra barata que, evidentemente, preferia ir para o Belo Monte com toda a beleza poética e profética que a circundava, a trabalhar para outrem em condições muito pouco satisfatórias. Isso, claro, quando havia serviço no sertão... Bastante ligado às tradições católicas, Antônio Vicente Mendes Maciel protesta e luta contra a república - não que tivesse qualquer contato ou vínculo com os Orleans e Bragança, sua pregação era sebastianista! Com efeito, o orgulhoso positivismo republicano tirou da Igreja uma série de prerrogativas, por exemplo com a criação do casamento civil e a laicização dos cemitérios... Lutando com dificuldade - e conseguindo - melhorias existenciais para sua gente, Antônio Conselheiro acaba por atrair a repressão brutal de uma república incipiente, acaba por atrair a ira fanática daqueles que o julgavam (ou assim faziam crer através de maciça propaganda) “um monarquista disposto a lutar pela restauração do império de Pedro II” quando na verdade, o que ele queria mesmo era ver o império da “lei de Deus”, contra a “lei do Cão” da república velha.
Em nossa história, inúmeros foram os casos de tentativas de implantação de um projeto civilizatório diferente, todos implacavelmente massacrados pela sociedade afluente: Palmares, Colônia Cecília, a República Comunista Cristã dos Guaranis, Canudos, o Contestado... Somente os episódios que tiveram evento em Canudos contaram com a cobertura de alguém do porte genial de Euclides da Cunha, deixando-nos o legado de buscar ter mais compreensão e tolerância para com o diferente.



A CIÊNCIA E O BRASIL


A historiografia das ciências no Brasil é caracterizada pelo fato de considerar a criação das universidades na década de 30 do século XX como sendo a introdução da ciência no Brasil. A prática científica nos períodos anteriores a essa data é geralmente considerada como resultado da influência européia, não passando de mera repetição e copias das teorias vigentes na Europa.
Não acreditamos que todo o trabalho intelectual brasileiro desde meados do século XIX possa ser considerado simples imitação, já que isso significaria "cair em certo reducionismo, deixando de lado a atuação de intelectuais reconhecidos na época, e mesmo desconhecer a importância de um momento em que a correlação entre a produção cientifica e o movimento social aparece de forma bastante evidenciada." (SCHWARCZ, 1993, p.17)
No caso das teorias raciais parece ainda mais improvável a hipótese delas terem sido "importadas" e reproduzidas aleatoriamente no Brasil. Elas podiam trazer uma sensação de proximidade com a Europa e uma confiança no progresso e na civilização, "pareciam justificar cientificamente organizações e hierarquias tradicionais que pela primeira vez começavam a ser colocadas publicamente em questão" (SCHWARCZ, 1993, p.18), mas também traziam um enorme mal estar. Como encarar a interpretação pessimista da mestiçagem presente nessas teorias num país já tão miscigenado?
Aceitar, copiar e reproduzir essas teorias no Brasil iria inviabilizar um projeto de construção nacional que mal tinha começado. Os homens de ciência brasileiros tiveram que achar uma resposta original, adaptando essas teorias utilizando o que combinava e descartando o que era problemático para a construção de um argumento racial no país. Esses homens são encontrados nos grupos de intelectuais reunidos nos diversos institutos de pesquisa e "longe de conformarem um grupo homogêneo (...) estes intelectuais guardavam, porém, certa identidade que os unia: a representação comum de que os espaço científicos dos quais participavam lhes davam legitimidade para discutir e apontar os impasses e perspectivas que se apresentavam para o país"(SCHWARCZ, 1993, p.37).
A ciência era para esses homens o único caminho possível para as transformações e sobrevivência do Brasil. A vertente cientificista buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira, que determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo. Segundo essa mesma vertente, recorrendo à leis e métodos gerais, seria possível encontrar as especificidades da evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo. Como apontou Sevcenko, essa atitude seria "uma versão desdobrada do lema lapidar do positivismo: 'Prever para Prover" (SEVCENKO, 1981, p.103).
A necessidade de conhecer o Brasil também estava calcada no medo que muitos dessa geração tinham de que o país fosse invadido pelas potências expansionistas e viesse a perder autonomia ou parte do território. O próprio Euclides da Cunha pregava a necessidade da colonização do interior e a construção de uma rede interna de comunicação viária.
Essa atitude reformista e salvacionista pretendia criar um saber próprio sobre o Brasil nos seus mais diferentes aspectos e resultava em duas reações da comunidade científica. A primeira era acreditar no curso natural dos acontecimentos, sublimando as dificuldades presentes e transformando a sensação de inferioridade em um mito de superioridade. A segunda era buscar um conhecimento profundo do país para descobrir um certa ordem no caos presente. Acreditamos que Euclides da Cunha esteja no segundo grupo, não só porque em momento algum aponta o embranquecimento natural da população, mas, principalmente pelas suas tentativas de determinar um tipo ético representativo da nacionalidade ou, pelo menos, simbólico dela.



EUCLIDES DA CUNHA E A COMUNIDADE CIENTÍFICA


Na obra de Euclides da Cunha podemos perceber a influência de várias teorias que estavam em voga na época e, por isso, temos que entender como ele entrou em contato com elas. O regulamento implantado em 1874 na Escola Militar da Praia Vermelha, onde Euclides da Cunha realizou seus estudos de engenharia, foi implantado num "ambiente intelectual já permeável às doutrinas cientificistas, de cunho positivista, evolucionista ou determinista."(SANTANA, p. 35)
Por adotar o modelo francês uma das principais características da Escola Militar era a ênfase dada aos estudos matemáticos e um currículo que abrangia as ciências básicas para a formação de um engenheiro. Segundo Walnice Galvão, o estudo na Escola Militar foi muito importante para o conhecimento presente nos Sertões, "se compararmos as áreas de conhecimento que lá são mobilizadas com o currículo da Escola quando ele era aluno, verificamos que ele já estava familiarizado com boa parte delas. Tinha estudado na Escola química orgânica, mineralogia, geologia, botânica, arquitetura civil e militar, construção de estradas, desenho topográfico, ótica, astronomia, geodésia, administração militar, tática e estratégia, história militar, balística, mecânica racional, tecnologia militar e as matemáticas.(...) Como matérias de currículo, não teriam sido obrigatoriamente estudadas a fundo, conforme se percebe no livro, mas é com vistas afinadas para estes saberes que Euclides avalia Canudos e a guerra."(SANTANA, p.43)
Como podemos explicar então o fato de teorias não necessariamente ligadas com a engenharia estarem presentes na obra de Euclides da Cunha, já que como afirma Sevcenko, ele se utiliza de "bases genéricas do comtismo, para fundi-las com a sociologia organicista e a filosofias biossociais de cunhagem inglesa e alemã" (SEVCENKO, 1981, p.149). O contato com as correntes cientificistas não se davam exclusivamente via sala de aula, mas "incorporadas ao cotidiano dos alunos através de revista e sessões de sociedades estudantis, onde se poderiam acompanhar os debates das teorias cientificistas mais modernas, como as de Spencer, Haeckel e Darwin."(SANTANA, p.35)
Depois de formado, Euclides da Cunha continua em contato com os escritos desses autores e também passa a ler escritos sobre o Brasil, como as obras de Varnhagem, Morize, Caminhoá, Silvio Romero, Capistrano de Abreu, Teodoro Sampaio, Derby, Saint-Hilaire, Liais. Em São Paulo, Euclides da Cunha encontra alguns desses novos autores que foram contratados para trabalhar nas recém implantadas instituições, das quais são exemplos: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886), o Instituto Agronômico de Campinas (1887), o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1892), a Escola Politécnica de São Paulo (1893) e o Museu Paulista (1894).
Euclides da Cunha era um integrante dessa comunidade científica e, apesar de só entrar para o IHGB depois de escrever os Sertões, já era filiado ao IHSP desde 1897 e à Comissão de História e Estatística de São Paulo desde 1898. Estes eram os espaços que permitiam a relação entre os filiados e as outras instituições e, principalmente, a difusão dos trabalhos dos pesquisadores.



PRESENÇA DE EUCLIDES


O sucesso da Aldeia Sagrada de Belo Monte, como era chamada pelos habitantes locais, sua recusa em pagarem impostos à república que nada lhes oferecia e o fato de a mão-de-obra barata que os encarregados das fazendas locais buscavam aliciar, por ordem dos “Coronéis”, estar inacessível, acabaram por conduzir a uma guerra covarde tendo (como todas as guerras, de Canudos a Bagdá) um motivo banal e improvável. Em Canudos foi um pedido de madeira para a construção de uma Igreja na Aldeia Sagrada. Madeira comprada e paga na vizinha cidade de Juazeiro da Bahia, recebe o Conselheiro um recado dando conta que os proprietários da empresa (provavelmente por pressão dos “coronéis”) não dispunham de gente suficiente para levar o material até Belo Monte. A isto o Conselheiro teve uma sugestão muito simples e enviou a mensagem: “gente aqui tem de sobra! Deixe que vamos buscá-la!”. O Juiz da Comarca de Juazeiro compreendeu a mensagem como uma “ameaça de invasão de jagunços à pacata cidade” e convocou a Polícia Militar que foi, armada, ao encontro dos canudenses. Melhores conhecedores do terreno e motivados por uma fé inabalável, derrotaram os policiais e apoderaram-se do armamento voltando, ainda surpresos, para Belo Monte. Neste momento, por pressão das autoridades, o Exército Brasileiro foi convocado a dar combate “àqueles bárbaros”.
No final do século XIX a questão “civilização versus barbárie” se colocava como ordem do dia. Assim, em nome da civilização cristã ocidental, a Europa “civilizou” massacrando contingentes humanos gigantescos na África e na Ásia. Foi o neocolonialismo. Era necessário escoar o excedente da produção européia ampliando o mercado consumidor e conseguir mão-de-obra barata, a Europa – Inglaterra à frente – foi a grande protagonista daquele processo de massacre totalitário, daquela “globalização” como se chama hoje. Sim, o mundo já passou por vários processos de globalização; para citar algumas: a macedônica, a romana, a ibérica, a britânica e hoje sofre globalização estadunidense. Todas desumanas e historicamente datadas.
A guerra de Canudos insere-se no contexto da globalização européia, o neocolonialismo do século XIX. Em guerras, campanhas eleitorais burguesas e pescarias a primeira vítima é a verdade. Os jornais cariocas estampavam manchetes tão sensacionalistas quanto inverídicas dando conta de que os canudenses queriam a restauração da monarquia e a volta de D. Pedro II (eles não tinham o menor contato ou simpatia pelos Orleans e Bragança recentemente ejetados do poder! Ansiavam messianicamente pela volta de D.Sebastião, morto pelos mouros em 1578 na Batalha de Alcácer Quibir!). De delírio em delírio chegou-se a falar em canibalismo, bestialidade, incesto e insanidades tais que a Imprensa Paulista, decidiu-se a convidar seu brilhante colaborador Euclides da Cunha para, na condição de Primeiro Correspondente de Guerra da História, informar o que cargas d’água estava de fato acontecendo por lá.
Fosse como fosse, a guerra já estava a seu final quando a viagem de Euclides da Cunha a Canudos tornou-se viável. Ele levou consigo todo o preconceito da época contra os canudenses encontrando por lá um quadro totalmente diferente do até então avençado; ao lermos a Obra máxima de Euclides da Cunha, por sinal, verificamos que fica estarrecido com a barbárie de que são capazes as tropas republicanas; não menos, aliás, que o fica com o fanatismo dos canudenses... Em nome do progresso e da civilização assassinaram-se mais de vinte e cinco mil seres humanos, mocinhas foram tomadas como escravas (em plena república!) e destruiu-se uma proposta civilizatória pacífica e ordeira que só desejava viver independente da “república do cão”. Conduzidos pelo Conselheiro os canudenses eram levados a crer que se morressem a tiro, em combate às tropas da “república do cão” iriam para o paraíso. Se, por outro lado, fossem vitimados pela faca, iriam para o inferno. Conhecedores desta crença, os soldados republicanos tinham peculiar predileção por ordenar aos capturados que gritassem um “viva a República”, que equivalia a condenação eterna – e receberiam uma bala misericordiosa. Caso contrário, seriam mortos a faca... Quase ninguém cedia. Bradando ou não o mote proposto pelo captor, todos eram degolados. Era “gravata vermelha”...
Euclides tomou notas acuradas, momento a momento, da guerra cujos momentos finais assistiu. Parte delas foi usada em artigos para a imprensa de seu tempo. A todas usou na elaboração de Os Sertões, seu livro vingador, que granjeou-lhe imediato reconhecimento nacional e internacional. Já no ano seguinte foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Comissionado pelo Itamaraty, trabalhou com o Barão do Rio Branco na delimitação definitiva das fronteiras nacionais e tencionava escrever um alentado ensaio sobre o “Paraíso Perdido” a partir de um estudo demorado que fez na Amazônia, mas uma tragédia pessoal, tristemente famosa, ceifou-lhe a vida aos 43 anos de idade: em 1909 é assassinado pelo amante de sua mulher, Ana de Assis, durante uma troca de tiros. Ensaísta e narrador extraordinário de Os sertões, Euclides da Cunha é o primeiro escritor a encarnar o gigantismo da terra brasileira, fazendo de sua obra um dos principais alicerces da consciência nacional.



O SOCIALISMO EM EUCLIDES DA CUNHA


Na juventude assinou alguns trabalhos em defesa dos deserdados da terra usando o sugestivo pseudônimo “Proudhon”. O próprio livro Os Sertões o coloca vigorosamente no campo da esquerda.
No Dia do Trabalho de 1904 escreveu um artigo para a imprensa, sob o título “Um Velho Problema” que se constitui num dos primeiros ensaios sobre o socialismo no Brasil.
No ensaio registra: “A fonte única da produção e seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação.”
“A exploração capitalista é assombrosamente clara. (...) a pecaminosa injustiça do egoísmo capitalista, não permitindo, mercê do salário insuficiente, que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de músculos e nervos; está a justificativa dos socialistas ao chegarem todos ao duplo princípio fundamental: Socialização dos meios de produção e circulação; Posse individual somente dos objetos de uso.”
Em suma, este ensaio atesta a inegável afinidade de Euclides com o pensamento socialista e sua afinidade de classe para com os trabalhadores e excluídos.


Outras Obras

Contrastes e Confrontos traz uma coletânea de artigos para a imprensa, dentre os quais “Um Velho Problema”, em Peru versus Bolívia uma análise da guerra entre aqueles dois países e de que maneira isso repercute em nossas pretensões territoriais sobre a Bolívia, resultando no atual Estado do Acre. Em À Margem da História uma coletânea primorosa de estudos históricos e sobre a Amazônia segundo sua intenção de escrever uma obra alentada sobre o Paraíso Perdido, que não chegou a ser concluída.


O LIVRO

O livro apresenta 646 páginas e está, pelo índice, dividido em três partes. A divisão interna da obra é fruto da influência sofrida por Euclides do historiador francês Taine, o qual formulou no seu livro “Histoire de la Littérature Anglaise (1863)”, a concepção naturalista da história – teoria que defendia que a história é determinada por três fatores: meio, raça e momento. Tal concepção naturalista foi seguida pelo autor ao dividir Os Sertões em três partes correspondentes aos fatores de Taine: “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”. É também do historiador francês a citação que consta na nota preliminar do livro a qual traz a idéia que o “narrador sincero” deveria ser capaz de se sentir um bárbaro entre os bárbaros, com um antigo entre os antigos.
No plano interpretativo, o professor Alfredo Bosi propõe a divisão da obra em dois grandes planos: primeiro o plano histórico, que corresponde a parte final do livro – “ A Luta” – , sendo que este é seguido pelo plano interpretativo que, por sua vez, corresponde às duas divisões iniciais do mesmo (“A Terra” e “O Homem”). O momento histórico se reflete na obra tanto na estrutura determinista (que defende que os estudos devem partir dos aspectos geológicos, passando para detecção das variações climáticas para finalmente chegar ao último elo da cadeia que é o homem) quanto no raciocínio homólogo entre as ciências, onde verificamos a transposição de idéias da biologia e geologia para a explicação dos fenômenos humanos.
Como pudemos observar, Euclides da Cunha era, em poucas palavras, um engenheiro militar, republicano, positivista que viveu na segunda metade do século XIX em um país culturalmente preso à França; e é com esse indivíduo que devemos nos dialogar durante a leitura desta obra. Até agora, nos detemos em fazer uma análise do momento, do contexto, da vida, da ciência no Brasil, que envolveram o autor e sua obra, pois acreditamos que esse é o instrumental teórico necessário para analisar um texto de tão profundo impacto quanto Os Sertões. Uma leitura que eventualmente não atente para estes detalhes pode deixar de observar a importância desta obra, ou então, cometendo um anacronismo imensurável, taxá-la de racista. Passemos agora ao texto e suas características principais.


Nota preliminar

A “Nota Preliminar” da obra mostra, de uma maneira resumida, qual é o instrumental teórico do autor. Quando Euclides usa termos como “sub-raça sertaneja”, ele admite ser adepto tanto do determinismo biológico quanto do darwinismo social. A marcha da civilização avançaria inexoravelmente sobre o sertão “no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes” (GALVÃO, 1998, p.14), porém, a Campanha de Canudos constituía em um retrocesso, um crime. Este é o primeiro grande contraste de uma obra cheia deles: os homens desenvolvidos do sul e do litoral que deveriam civilizar a sub-raça que vivia isolada na “terra ignota” do interior, leva na verdade a morte para homens, mulheres, velhos e crianças.

I. A TERRA
A primeira parte, A Terra, descreve o cenário em que se desenrolou a ação. Euclides da Cunha, num apanhado geral, estudou os caracteres geológicos e topográficos das regiões que estão entre o Rio Grande do Norte e o sul de Minas Gerais, de modo particular a bacia do rio São Francisco. Nos sertões do norte, fala discorre sobre a seca, das causas da mesma, dando relevo especial ao papel do homem como agente geológico da destruição, que ao praticar desde os tempos mais remotos a agricultura primitiva baseada em queimadas, arrasou as florestas. Os desertos, a erosão, o ciclo das secas terríveis vieram em seguida.
O palco é o sertão da Bahia. Euclides localiza-o e preocupa-se com todos os detalhes do cenário, em constante mutação, com córregos e rios que secam ou transbordam; com tempestades que se formam em paraíso, dando lugar à flora tropical. Analisa todos os detalhes antes de fazer entrar em cena muitos personagens diferentes, e os soldados das quatro expedições para se iniciar a luta. Nessa descrição, Euclides da Cunha estuda de maneira detalhada o meio que determinou a formação do homem sertanejo. Isso serve de ratificação da teoria determinista, muito em voga na época, que postulava a determinação do meio sobre o homem. O seguinte trecho é bastante ilustrativo, tanto do ponto de vista formal quanto do metodológico, dessa primeira parte do livro:

“Do alto da Serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas, nota-se, como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas de serras, ao invés de se alongarem para o nascente, medianas aos traçados do Vaza- Barris e Itapicuru, formandolhes o divortium aquarum, progridem para o norte. Mostram-no as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e fundindo-se na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros. Unificadas, aliam-se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando-se as massas do Cambaio, de onde irradiam as pequenas cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de Jeremoabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhada pelo Vaza- Barris em Cocorobó, inflete para o poente, repartindo-se nas da Canabrava e Poço-de-Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, uma elítica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos – e daí para o norte, de novo se dispersam e descaem até acabarem em chapadas altas à borda do S. Francisco.”


Começa apresentando o planalto central, com seus diferentes relevos: no sul litorâneo, as maiores altitudes; em Minas Gerais, as montanhas mais altas entram pelo interior e, caminhando para o norte, na Bahia, o aplainamento geral. Nesta região, está o sertão, com uma ondulação de montanhas baixas, limitado pelo rio São Francisco ao norte e ocidente e, ao sul, pelo rio Itapicuru.
Desconhecido e sempre evitado, esse sertão tem um solo seco, sem umidade, estéril, queimado pelas secas e um clima hostil. Euclides escreve: "(...) tem a impressão persistente de calcar o fundo recém-sublevado de um mar extinto".
Alguns rios que o cortam transbordam nas chuvas e somem nas secas, deixando, de longe em longe, algumas poças de água no seu leito. O mais importante deles é o Vaza-Barris que, numa de suas curvas, banha Canudos, rodeada de montanhas.
O clima do sertão é instável: dias tórridos e noites geladas. O ar é seco e essa secura foi descrita em "Higrômetros singulares". Num trabalho de 1974, a professora Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva escreveu: "(...) os cadáveres de um soldado e de um cavalo, mortos na peleja, depois de três meses estavam ainda em perfeito estado, apenas ressequidos como múmias".
As secas são cíclicas e assolam a região. Dizem os caboclos que se as chuvas não vierem de 12 de dezembro a 19 de março, haverá seca o ano todo.
A travessia da caatinga, com sua vegetação resistente, com suas árvores sem folhas, com espinhos e "os gravetos estalados em lanças", é "mais exaustiva que a de uma estepe nua". Na caatinga estão os cajuís, macambiras, caroás, favelas, juazeiros, xiquexiques (cactos)..., sendo algumas dessas plantas reservatórios de água.
Quando vem a tormenta, o sertão se transforma em paraíso: ressurge a flora, com seu verde, suas flores exuberantes à beira das cacimbas. Ressurge a fauna: catitus, queixadas, emas, seriemas, sericóias, suçuaranas...
No final da primeira parte, Euclides comenta que os sertões do norte não se enquadram em apenas uma categoria geográfica do filósofo alemão Hegel, ou seja: no verão, vestem-se de "estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas"; no inverno, com as chuvas, transformam-se em "vales férteis, profusamente irrigados". No sertão, as duas categorias se apresentam numa mesma estação.
No capítulo "Como se faz um deserto", o autor cita o homem assumindo "em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos", através do fogo, das queimadas. E apresenta a solução: açudes, que aumentarão a evaporação e as chuvas, como fizeram os romanos em Cartago.

II. O HOMEM

A segunda parte, O Homem, completa a descrição do cenário com a narrativa das origens de Canudos. Ali Euclides da Cunha estudou a gênese do jagunço e, principalmente, a de seu líder carismático, Antonio Conselheiro. Falou de raças (índio, português, negro), e de sub-raças (que indica com o nome "mestiço"). Em O Homem o autor caracterizou o sertanejo como "Hércules-Quasímodo", usando antíteses e paradoxos (Hércules era um semideus latino, encarnação de força e valentia; Quasímodo era sinônimo de monstrengo, de pessoa disforme, personagem de Nossa Senhora de Paris, romance de Victor Hugo). A formação do povo brasileiro é assim descrita pelo autor:


“Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico diferenciador – e ainda, sob todas as suas formas, as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de diversos climas, tendo discordantes aspectos e opostas condições de vida, pode afirmar-se que pouco nos temos avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo sério problema; mas não desvendamos todas as incógnitas.
É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o indo-guarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que pressupõe, despontam três fatores diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas.
É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão dos dados objetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicá-la, de todo despeada da intervenção daqueles, não simplificaria o problema.”

Preparando o ambiente para os episódios de Canudos, Euclides da Cunha expôs a genealogia de Antônio Conselheiro, suas pregações e a fixação dos sertanejos no arraial de Canudos.
Nesta segunda parte, os personagens entram em cena: jagunços, sertanejos, o Conselheiro..., isolados há séculos no sertão, o que provocou sua estagnação cultural.
Levados pelo texto, adentramos Canudos e, com a multidão, vamos participar de suas tradições, danças, desafios, e da sua religião mestiça.
Euclides da Cunha estuda a gênese, a formação do brasileiro, resultante dos cruzamentos entre o indígena, o negro e o português. Desta mistura, por muitos motivos, não resulta um tipo étnico único para o Brasil: "(...) não temos unidade de raça".
Historicamente, os cruzamentos entre portugueses e negros se realizaram no litoral, porque o negro vinha para o trabalho escravo nos canaviais da costa brasileira. Entre portugueses e índios, realizaram-se no sertão, pois os gentios se refugiavam no agreste do interior, avessos ao trabalho por razões culturais.
Para o estudo da formação étnica do sertanejo, Euclides estuda o povoamento das regiões banhadas pelo rio São Francisco. O sul foi povoado pelos bandeirantes; a região média, pelos vaqueiros, e no norte seco, pelas missões jesuíticas.
As cidades que margeiam o sertão de Canudos são originárias de missões e aldeamento de índios, como atestam seus nomes: Panibu, Patamoté, Uauá, Bendegó, Cumbe, Jeremoabo. Seus habitantes resultam de cruzamentos, com predominância do índio sobre o branco e sobre o negro.
Isolados pelo deserto, sua mestiçagem foi uniforme. Embora a mistura de raças diferentes seja prejudicial, os sertanejos formaram uma raça forte.
O isolamento de um povo fortalece a espécie, mas é fator determinante da estagnação, provocando o atraso, o conservadorismo, a igualdade de pensar, de sentir, de agir... O isolamento torna-se retrógrado, mas não degenerado. (Abrimos parênteses para esclarecer que não só Euclides foi criticado por erros como os que se seguem: os males do cruzamento, os esmagamento total das raças fracas. Outros autores o foram. Euclides se baseava na teoria racial do final do século XIX, que afirmava ser a raça branca sinônimo de progresso, condenando a miscigenação...)
"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços do litoral. A sua aparência, entretanto, (...) revela o contrário. (...) É desengonçado, torto. (...) Reflete a preguiça invencível, (...). Basta o aparecimento de qualquer incidente (...) transfigura-se. (...) reponta (...) um titã acobreado e potente (...) de força e agilidade extraordinárias." Veste-se de couro, protegendo-se dos espinhos da caatinga. É vaqueiro. Sua cultura respeita antiquíssimas tradições. Torna-se um retirante, impulso pela seca cíclica, mas retorna sempre ao sertão.
Sua religião, como ele, é mestiça. O catolicismo atrasado se mistura aos candomblés do índio e do negro e se enche de superstições, crendices e temores medievais, conservados pelo isolamento, desde a colonização. Ele é crédulo, supersticioso, e esse deixa influenciar por padres, pastores e falsos profetas.
Neste ambiente, surgiu Antônio Conselheiro, que absorveu as crenças do seu meio. Fixou-se em Canudos com seus seguidores, que acreditavam na certeza de ir para o céu se mortos em combate, defendendo uma causa sagrada.
O Conselheiro, Antônio Vicente Mendes Maciel, nasceu em Quixeramobim, no Ceará. Trabalhou com o pai comerciante, que morreu ao se desentender com os Araújos, seus inimigos. Depois dos casamentos das irmãs, ele se casou logo se desiludiu com a traição da companheira. Envergonhado, mudou-se, sem se fixar: Sobral, Campo Grande, trabalhando como caixeiro e escrivão de juiz. Em Ipu, fugiu-lhe a mulher, acompanhando um soldado. Em Paus Brancos, alucinado, feriu um seu parente que o hospedara. Desapareceu. "Morrera por assim dizer".
Reapareceu dez anos depois, nos sertões de Pernambuco e em Itabaiana (SE), em l874, impressionando os sertanejos: alto e magro, barba e cabelos desgrenhados e longos, túnica de brim americano azul, com uma corda na cintura, sandálias, alforje e chapéu de couro, ele pregava nos povoados uma doutrina confusa, que se misturava às rezas de dois catecismos que carregava "Missão Abreviada" e "Horas Marianas". Pregava o fim do mundo, a preparação para a morte, a penitência. A multidão o seguia, sem que ele a convocasse. Fazia prédicas e profecias, casamentos e batizados, reconstruía igrejas, muros de cemitérios. O clero o tolerava e procurava, deixando-o pregar, até mesmo contra a República, que interveio em áreas regidas pela tradição e reservadas à religião. Como aumentasse seu ataque, a Igreja tentou interrompê-lo.
Em Bom Conselho, reuniu o povo num dia de feira e queimou as tábuas dos impostos, discordando das leis republicanas do governo de Satanás. O acontecimento repercutiu e a polícia reagiu. Perseguido, o Conselheiro tomou a estrada de Monte Santo, defrontando-se com a tropa em Maceté. Os 30 praças armados atacaram. Os jagunços os desbarataram.
O Conselheiro - conhecedor do sertão - e seus seguidores tomaram o rumo do norte. Chegaram a Canudos, em 1893, uma fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris. "Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito"(...) "O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas", sem ordem, sem ruas: um verdadeiro labirinto, com casa de pau-a-pique, habitadas por um população multiforme, de sertanejos simples, beatas, ricos proprietários que abandonavam tudo em busca da salvação e por bandidos ali protegidos, que respeitavam as regras: rezar e fazer sacrifícios para alcançar a vida eterna. A igreja, uma fortaleza, a mais importante obra do Conselheiro, estava diante da praça. Euclides descreveu a lei mantida por facínoras, as rezas, os sermões, as danças, o dia-a-dia do aglomerado e os tipos fascinantes dos heróis: João Abade, Pajeú, João Grande, Vila Nova, Chico Taramela, Macambira, Beatinho.
Antônio Conselheiro pregava contra a República, contra o governo do Anti-Cristo e da lei do cão. "Mas não traduzia o mais pálido intento político". Os jagunços, "rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa", não conseguiam diferenciar a República da Monarquia. (Abrimos aqui um novo parênteses: algumas mudanças da nova ordem respingavam no sertão: separação Igreja-Estado, obrigatoriedade do casamento civil, cobrança de impostos pelos Estados: coisas incompreensíveis pelos sertanejos). E o povo versejava e cantava:

"Casamento vão fazendo/ Só pro povo iludir/ Vão casar o povo todo/ No casamento civil".
"Visita nos vem fazer/ Nosso rei D. Sebastião/ Coitado daquele pobre/ Que estiver na lei do cão".
"Eram realmente, fragílimos, aqueles pobres rebelados...
"Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta."
"Entretanto enviamos-lhes (...) a bala".

III. A LUTA


A terceira parte, A Luta, é a mais importante, constituída da narrativa das quatro expedições do Exército enviadas para sufocar a rebelião de Canudos, que reunia "os bandidos do sertão": jagunços (das regiões do Rio São Francisco) e cangaceiros (denominação no Norte e Nordeste). Havia cerca de 20.000 habitantes no arraial, na maioria ex-trabalhadores dos latifúndios da região. Dividida em seis subtítulos (Preliminares, Travessia do Cambaio, Expedição Moreira César, Quarta Expedição, Nova Fase da Luta e Últimos Dias) completou, por sua vez, o elenco dos personagens esboçado na segunda parte (O Homem), quer estudando-os em conjunto, como no trecho Psicologia do Soldado, quer em closes particularizantes, como no retrato físico e psicológico do coronel Antônio Moreira César.

Início da luta As autoridades de Juazeiro se recusam a mandar a madeira que Antônio Conselheiro adquirira para cobrir a igreja de Canudos; os jagunços, então, pretendiam tomar à força o que haviam comprado e pago. Avisado das intenções dos homens de Conselheiro, o governo do Estado manda que em Juazeiro se organize uma força que elimine o foco de banditismo.

A primeira expedição - Em novembro de 1896, foi enviada um pequena expedição, com 104 soldados, comandados pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira. Dia 21, os jagunços os encontraram em Uauá. A tropa retrocedeu, atacada com facões, bacamartes e aguilhões de vaqueiro, e apavorada com os gritos e vivas dos conselheiristas. Foi o prelúdio da guerra sertaneja.


A segunda expedição - O major Febrônio de Brito comandou essa expedição, com 543 soldados, 14 oficiais e 3 médicos, saindo de Monte Santo, em 12 de janeiro de 1897. Os mais de quinhentos homens são emboscados pelos jagunços em terrenos acidentados, no Morro do Cambaio e em Tabuleirinhos. Sem conhecer a guerra nas caatingas, a tropa foi inesperadamente atacada na estrada que atravessa a Serra do Cambaio. O sertanejo atraía os soldados para a caatinga, que os feria, exaurindo-os. Destacam-se os “bandidos” João Grande e Pajeú, este último considerado por Euclides verdadeiro gênio militar. Reduzidas a cem homens e sem munição, as tropas do governo são obrigadas a voltar a Monte Santo. Apesar de 415 jagunços mortos, este segundo insucesso militar provocou impacto nacional.


A terceira expedição - Partiu do Rio de Janeiro, com 1.300 homens, em 3 de fevereiro de 1897, comandada pelo Cel. Moreira César, armados com canhões Krupp — recém-importados da Alemanha —, sem planos definidos, atacando de frente, do Morro da Favela, o arraial de Canudos. Os jagunços, protegidos pela irregularidade do relevo, buscavam o corpo-a-corpo e desorganizaram as tropas, que na retirada desastrosa deixaram para trás armas, munições, os canhões Krupp e o próprio general Moreira César, que, no dia 02 de março, foi ferido com duas balas em combate, morrendo no dia seguinte. Foi substituído pelo Coronel Pedro Nunes Tamarindo. A tropa fragmentou-se, dispersou-se, debandou em pânico, desfazendo-se de armas e munições, recolhidas pelos jagunços. O corpo de Moreira César foi jogado no caminho. Quando atravessava o córrego de Angico, querendo conter seus homens, o Cel. Tamarindo foi morto. Morreu, também, o comandante, Cap. José Agostinho Salomão da Rocha. Comoção nacional. "A República estava em perigo".


A quarta expedição - Sob o comando do General Artur Oscar, organizaram-se em 5 de abril de 1897, as forças dessa expedição; 4 brigadas em 2 colunas, com 4.283 soldados. Com roteiros diferentes, as duas colunas encontrar-se-iam em Canudos.
A 2ª coluna, comandada pelo general Cláudio do Amaral Savaget, com 2.350 homens, partiu de Jeremoabo (SE), em 16 de junho, chegando a Canudos pela Serra de Cocorobó ao norte, onde venceu os jagunços. Após a vitória, mudam a estratégia, dividindo-se em pequenos batalhões.
A 1ª coluna, comandada pelo general Artur Oscar Andrade Guimarães, seguiu pelas estradas de sempre, partindo de Monte Santo (BA) , em 19 de junho, com 1.933 soldados. foi atacada no Morro da Favela. Depois de insucessos e ataques juntou-se à 2ª coluna.
As duas colunas tentam um ataque maciço. Conseguem tomar boa parte do arraial, mas os soldados mal resistem à fome e à sede. Em agosto de 1897, oito mil homens deslocam-se para a região, comandados pelo próprio ministro da Guerra, o marechal Carlos Bittencourt, que os abasteceu.
Os sertanejos foram encurralados em Canudos, resistindo à superioridade de homens e armamentos, sob os tiros da matadeira (canhão) e de dinamites. São cortadas as saídas de Canudos, o abastecimento de água é interrompido. Um tiro de canhão atinge a torre da Igreja. Estóicos, esperando a salvação eterna, os sertanejos não se renderam, e muitos foram degolados após o assalto final.
Completou-se o cerco de Canudos, com jagunços enfrentando fome e sede, bombardeios e incêndios.
Dia 22 de setembro de 1897, uma disenteria quase dizimou os fiéis, matando Antônio Conselheiro. Os sobreviventes defendiam a Aldeia Sagrada.
Caiu Canudos, em 5 de outubro de 1897, "ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. (...) No dia 6 acabaram de destruir desmanchando-lhes as casas, 5.200, cuidadosamente contadas. (...)"
"Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro. (...) Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa (...)! Fotografaram-no depois. (...)". Cortaram-lhe a cabeça. "Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. (...) Ali estavam (...) as linhas essenciais do crime e da loucura."
Este trecho de Euclides da Cunha descreve a situação no final dos combates:

“A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas. Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o “hospital de sangue” dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército. E lutavam com relativa vantagem ainda. Pelo menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas do sargento-ajudante do 39o, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperam pelos últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os...”

A guerra durou um ano e mobilizou mais de 12 mil soldados vindos de 17 estados brasileiros, mais da metade de todo o efetivo distribuídos em 4 expedições militares. Estima-se que morreram mais de 25 mil pessoas, culminando com a destruição total da cidade. Foi, de longe, a maior guerra de guerrilhas da história do Brasil.
Perpetuou-se dessa forma o crime de uma nacionalidade inteira, no dizer de Euclides da Cunha, que a tudo acompanhou do Morro de Uauá, de onde escrevia suas reportagens para o jornal A Província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo, mais tarde refundidas nessa obra monumental: Os Sertões.



O PLANO INTERPRETATIVO

As características de topógrafo, engenheiro e geógrafo, colocam em destaque a riqueza técnica e a sensibilidade do autor na descrição das várias paisagens do Brasil. Um exemplo dos conhecimentos técnicos é quando o mesmo explica a sazonalidade e a previsibilidade das secas do nordeste. Neste trecho fica demonstrado que o autor não só descreve como problematiza as questões climáticas porque tem conhecimento de causa.


Como quer que seja, o penoso regime dos estados do Norte está em função de agentes desordenados e fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeita às perturbações locais, derivadas da natureza da terra. Daí as correntes aéreas que o desequilíbram. (...)Um dos motivos da seca repousa, assim, na disposição topográfica.(GALVÃO, 1998, p. 43)


O sertão é tão inóspito que até a natureza se contorce para ali viver. E como a natureza também o homem se modifica e se adapta a ela. Euclides denuncia de certa forma o fato desta área ser muito mal estudada, e, até nessa questão, culpa a natureza por isso. O sertão e o sertanejo são algo nunca dantes entendidos e estudados e isto é um dos fatores que fizeram de sua obra tão lida e tão comentada na época.
As comparações entre o sul e o norte mostram que desde o início da obra Euclides tem como objetivo mostrar como que, através do determinismo geográfico, se formou uma sub-raça mestiça no sertão. O sul seria a terra que atrai o homem e o norte a que expulsa, como podemos ver nos trechos abaixo:


E por mais inexperto que seja o observador – ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas voragens(GALVÃO, 1998, p. 29)

Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma essencial entre o Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regime meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o sertão e a costa. (GALVÃO, 1998, p.74)

A partir de tais comparações o autor toma como certeza que a aclimatação dos indivíduos seria prejudicial para o desenvolvimento dos mesmos. O europeu do que colonizou o Norte teria sido corrompido pelo clima, já o do sul teria mantido as características superiores pela mesma razão.


A aclimatação traduz uma evolução regressiva. O tipo desaparece num esvaecimento contínuo, que se lhe permite a descendência até à extinção total. Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos. (GALVÃO, 1998, p.79)


Neste trecho temos em resumo a idéia do porquê que o autor descreve tão detalhadamente a terra. São as teorias deterministas, tanto biológicas quanto geográficas, que o norteiam. O homem é um fruto de seu lugar. Para o Euclides que escreve antes de ver pessoalmente o desmonte criminoso do arraial de Canudos, as leis européias são as máximas vigentes.
Os tipos brasileiros, como o sertanejo e o gaúcho, resultaram não só da mestiçagem, mas também da interação entre homem e natureza, homem e sociedade. Continua a operar o paralelo entre as séries, especialmente entre as mais próximas: as espécies de plantas e de animais devem a sua anatomia e fisiologia tanto à herança quanto a seculares esforços de adaptação ao meio e aos outros organismos. A simetria, que se dá por provada no nível genético e no nível mesológico, estendendo-se ao social. E os caracteres raciais ora confirmam-se ora se alteram no curso histórico da luta pela vida.
A descrição geográfica da região onde se instala o “Belo Monte” de Conselheiro, é detalhada, o que dá à obra uma característica própria do autor. O clima, o solo, os ventos, as chuvas, a temperatura, os animais e o homem, tudo é descrito não só apenas por um observador atento, mas por um cientista natural.
O sertão é a terra esquecida pela metrópole portuguesa e posteriormente pela monarquia brasileira. Nela se formou isolada geograficamente um povo mestiço que se diferenciou dos mestiços litorâneos, para melhor, em razão do próprio isolamento no qual se mantiveram. Não podemos esquecer que “o sertanejo é antes de tudo um forte” porque não é como “os mestiços neurastênicos do litoral”. Eis, então, outro grande contraste que permeia toda a obra de Euclides da Cunha. Mas antes de mais nada, o autor reforça que toda “a mestiçagem extremada é um retrocesso”, o que vai de encontro com as teorias vigentes. Nessa época, dizer que o homem branco não superior à qualquer tipo de mestiçagem é uma ofensa a uma lei que até então era inquestionável.

Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a leste pela Serra Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins. O meio atraía-o e guardava-os.(GALVÃO, 1998, p. 190)

O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados. (GALVÃO, 1998, p. 103)

Eis porque o sertanejo leva vantagem sobre o mestiço do litoral. O primeiro permaneceu isolado enquanto o segundo teve que forçosamente se submeter às regras dos indivíduos superiores.
Para ilustrar a idéia de que o sertanejo é um forte, Euclides da Cunha cria a metáfora da rocha viva. Como vimos na época que escreveu Os Sertões Euclides estava em São José para reconstruir uma ponte que havia tombado, ele acaba encontrando uma base muito firme para essa reconstrução: o granito. A partir daí desenvolve uma correlação entre a pedra e o homem do sertão.
Respondendo à criticas de que essa metáfora entrava em contradição com sua afirmação da inexistência da unidade racial brasileira o próprio Euclides explica-a numa segunda edição do livro. "Rocha viva...A locução sugere-me um símile eloqüente.
De fato, a nossa formação como a do granito surge de três elementos principais. Entretanto quem ascende por um cerro granítico encontra os mais diversos elementos: aqui a argila pura do feldspato decomposto, variamente colorida; além da mica fracionada, rebrilhando escassamente sobre o chão; adiante friável, do quartzo triturado; mais longe o bloco moutnné, de aparência errática; de e por toda a banda a mistura desses mesmos elementos com a adição de outros, adventicios, formando a incaracterístico solo arável, altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra. Os elementos esparsos, em cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto guarda até os materiais estranhos trazidos pelo vento, ali estão, embaixo, fixos numa dosagem segura, e resistentes, e íntegros.
Assim, à medida que aprofunda, o observador se aproxima da matriz de todo definida no local. Ora o nosso caso é idêntico - desde que sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão.
A princípio uma dispersão estonteadora de atributos, que vão de todas as nuances da cor a todos os aspectos do caráter: Não há distinguir-se o brasileiro intrincado misto de brancos, negros e mulatos de todos os sangues e de todos os matizes. Estamos à superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação de há pouco, calcamos o húmos indefinido da nossa raça. Mas estranhando-nos na terra vemos os primeiros grupos fixos - o caipira no sul, e o tabaréu, ao norte - onde já se tornam raros o branco, o negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz, entretanto, ainda todas as variedades das dosagens díspares dos cruzamentos. Mas a medida que prosseguimos estas últimas se atenuam.
Vai-se notando maior uniformidade nos caracteres físicos e morais. Por fim a rocha viva - o sertanejo"(CUNHA, 1939, p.580)
Euclides da Cunha não encontra o tipo brasileiro, que segundo ele próprio talvez nem exista, mas estabelece um símbolo da nacionalidade, símbolo que podia se prestar "a operar como um eixo sólido que centrasse, dirigisse e organizasse as reflexões desnorteadas sobre a realidade nacional."(SEVCENKO, 1981, p.106)
Igualmente importantes são as descrições do tipo de vida e dos costumes sertanejos. Euclides mostra, à seu modo, como esses homens simples vivem, as suas relações com os animais e coma a natureza local, bem como o seu fanatismo religioso, seu respeito á morte, sua “psique” de uma forma geral.


O homem dos sertões – pelo que esboçamos – mais do que qualquer outro está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza, para os debelar, resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de um tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. (GALVÃO, 1998, p.126)



Antônio Conselheiro é mostrado como um indivíduo marcado por uma biografia dotada de elementos sobrenaturais. Carismático e penitente, o profeta conseguiu reunir muitos sertanejos de fé extremada. O povoado é descrito como se constituísse um agrupamento de bárbaros, uma tribo e até mesmo um clã. O autor dá considerável destaque para o fator que chegado certo tempo, todo o tipo de gente se dirige para Canudos o que causou um despovoamento das cidades vizinhas. Porém uma vez dentro do arraial, os diferentes se tornavam iguais e a coletividade de homogeinizava de uma forma surpreendente. “O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso bruto. Absorvia-o a psicose coletiva”(GALVÃO, 1998, p. 163)
Em linhas gerais, podemos definir esta parte do livro, o plano interpretativo de Bosi, a partir dos contrastes nela enunciados. São eles os travados entre a região sul e norte do Brasil, entre o litoral e o sertão nordestino, entre o sertão seco (infernal) e o sertão depois da chuvas (padisíaco) e finalmente entre o mestiço do sertão – curiboca – e o mestiço do litoral – mulato.
As descrições ricamente cheias de detalhes preparam o leitor para o plano histórico onde os fatos se desencadearão. Mais do que saber o que foi a Campanha, Euclides da Cunha nos oferece a partir de seu livro um “raio x” do sertão e do sertanejo como nunca fora antes feito. O leitor vai para “A Luta” sabendo quem e como vivem os atores deste triste episódio da história brasileira.


O FINAL

É importante pensar no mito que se criou em torno tanto do autor, quanto da obra. Existe ainda hoje uma relação passional com a figura de Euclides: duas cidades brigam para decidir aonde vão ficar seus restos mortais – São José do Rio Pardo, aonde escreveu o livro e Cantagalo, hoje também conhecida como Euclidolândia, onde nasceu. O livro, publicado cinco anos após o fim de Canudos, mesmo sendo um ataque ao exército e uma denúncia do genocídio causado pela República, é um sucesso e vende muito assim que publicado. Criador e criatura viram ícones. Mas para entender a criação deste mito, é preciso ver que este é um quebra-cabeça de várias partes. O próprio Dante Moreira Leite, justifica a importância e repercussão do livro por sua linguagem.


Se assim é, se a obra de Euclides da Cunha apresenta contradições tão nítidas – algumas das quais foram percebidas pelos primeiros leitores e críticos – pode-se perguntar como pôde ter uma repercussão tão grande. Esta não será compreendida se não lembrarmos o seu valor literário; embora não seja livro fácil, nem destinado a uma leitura desatenta, Os Sertões contém elementos de intensa dramaticidade, apresentados numa linguagem solene e adequada à grandeza da narrativa. (LEITE, 1983, p. 229)


Talvez o que mais marcou sua vida, tanto quanto sua obra, foi a sua viagem a Canudos. Euclides era um cientificista, dentre muitas outras coisas, que vivia em uma época em que não se “ia à luta”. Teóricos trabalhavam apenas sobre livros, mas Euclides vai a Canudos e suas idéias ganham dinâmica. Dante Moreira Leite analisa como tal experiência repercutiu em uma linguagem muito mais realista e vibrante:


(...) o estilo de Euclides, capaz de transmitir ao leitor a vibração de revolta diante dos acontecimentos de Canudos; além disso, como o livro pretende ser estritamente realista e, mais ainda, um livro de ciência, a sua prosa dramática adquire, talvez por estar contida nos limites da realidade histórica, uma intensidade que não teria na ficção. (LEITE, 1983, p. 222)


Muitas de suas concepções são alteradas. Diversas vezes, Canudos é associado ao movimento francês da Vendéia – como aparece : “Canudos era a nossa Vendéia” – sendo visto como um movimento monarquista por Euclides.
Mas, “o contato direto com as condições físicas e morais do sertanejo”(BOSI) , como defende Bosi, acabou por desmentir o pressuposto. No entanto, como depois também vai apontar Bosi, a interpretação se achava presa a um sistema de pensar fatalista. Entre o observador atento e a “cidadela-mundéu” dos jagunços havia mais do que um simples olhar desprevenido: a fixação do homem e o relato da luta não se fariam sem a tela das mediações ideológica e literária. Antônio Conselheiro vai ser sempre o fruto mórbido de uma cultura propensa à desordem e ao crime. Como a sociedade que o produziu, ele tende a reviver esquemas regressivos de conduta e linguagem. Como aparece no livro:

“É natural que estas camadas profundas de nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária – Antônio Conselheiro... As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado, dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isso o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais – vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos a multidão, mas enérgicos e definidos, quando definidos numa ‘individualidade’ (... ) É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências ‘pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade...”


A linguagem, como já explicitamos anteriormente, é extremamente marcante e importante em Os Sertões. Euclides se utiliza inúmeras vezes de estilos e figuras com certas finalidades. Em suas “Notas de Leitura”, ele mesmo afirma: “Vemos o quanto é forte esta alavanca – a palavra – que levanta sociedades inteiras, derriba tiranias seculares”.
Bosi atenta par o uso da linguagem como modo de explicar e fundamentar o que não tem fundamento nem explicação, a “ideologia do inapelável”. Daqui se entende o uso exaustivo de intensificações e antinomias, que imprimem um sentido grandiloqüente ao texto, além de: “reportar ao seu vezo de agigantar o tamanho, agravar o peso, acelerar o ritmo, alongar as distâncias, acentuar as diferenças, exasperar as tensões, radicalizar as tendências: em suma, ver nas coisas todas a sua face desmedida e extrema.” (BOSI: 6)
Um exemplo do próprio Sertões:


“Muito baixo no horizonte, o Sol descia vagarosamente, tangenciando com o limbo rutilante o extremo das chapadas remotas e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas baixadas, caía sobre o dorso a montanha... Aclarou-o por momentos. Iluminou, fugaz, o préstito, que seguia à cadência das rezas. Deslizou, insensivelmente, subindo, à medida que lentamente ascendiam as sombras, até ao alto, onde os seus últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros. Estes fulguraram por instantes, como enormes círios, prestes acesos, prestes apagados, bruxuleando na meia-luz do crepúsculo.
Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion, alevantava-se sobre os sertões...” (CUNHA, 1985, p.314-315)

Mas todo este estilo “rebuscado”, se explique pela narrativa tratar de uma realidade já vista e já sentida e qualificada como trágica. Assim, a montagem do relato acaba dependendo de uma série cronológica, o que deixa que a liberdade estilística se faça maior no momento da elocução (pelo uso intensivo das figuras de linguagem).
E foi realmente este seu estilo que o consagrou logo que publicou pela primeira vez Os Sertões, mesmo sendo o seu conteúdo, quem traz sua importância: a de conseguir ultrapassar o científico, ir à luta, ver, sentir e mudar.
Sua visão de mundo muda com sua vivência em Canudos. Mas talvez seja um pouco complicado tratar da visão de mundo de um homem tendo lido apenas um livro seu. Nicolau Sevcenko, em sua tese de doutoramento, faz uma análise minuciosa do que ele mesmo entende por “visão de mundo”, porém, para isso, se baseia em praticamente tudo que o autor deixou escrito. Como aparece na referida tese:

A partir da maneira como Euclides da Cunha dispõe, dá coerência, organiza e estrutura as concepções e idéias que lhe suscita a realidade circunjacente, no interior do espaço peculiar aberto por sua linguagem, é que podemos descortinar a sua visão de mundo. Assumem preponderância aqui as suas anotações de caráter mais pessoal, que serão cotejadas com as grandes diretrizes imprimidas pelo autor à sua obra e que vêm de ser apresentadas. (SEVCENKO, 1981, p. 211)

Porém, talvez sua visão cientificista e sua posição de republicano decepcionado ajudem a compreender seu mundo. Principalmente depois de Canudos, ele via uma inversão em sua sociedade. Mas o mais importante de pensar é como ele aparece como um homem de contradições e contrários. Tanto ele escreve e argumenta opondo elementos, como vive em um oscilar de posições. Quando Euclides vai a Canudos, perde este discurso factual e determinista; o inelutável e intransponível do fato vai cedendo às inflexões de um pensamento propriamente humano. A linguagem de denúncia e protesto que finaliza a narração de uma Canudos destruída cumpre a função de um apelo em que, como Bosi afirma: “pode aparecer um nós empenhado no que diz.” Então vamos ao final de Canudos:

“Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...
Ademais não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?...
E de que modo comentaríamos, coma só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5200, cuidadosamente contadas.
Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro.
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desprazido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tabua, o corpo do ‘famigerado e bárbaro’ agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, os olhos fundos cheios de terra – mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa – único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! -- faziam-se mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa agulheta de tecidos decompostos.
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal extinto, aquele terribilíssimo antagonista.
Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita – e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores.
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...”


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro acaba mas não termina. Com esta obra o Brasil ganhava uma das suas mais importantes reflexões sobre a identidade nacional. O escritor do início da obra, positivista que acreditava na república, é o mesmo que denuncia a dor a fome e a barbárie. Canudos foi um crime cometido para e pela reiteração da república. O cancro monarquista nunca existiu naquela terra esquecida pelos seus governantes e o Estado só chegara tão longe para trazer a injustiça e a morte. Essa não era a república reclamada pelo autor.
Como identidade nacional, podemos tirar desta obra a seguinte frase: “A nação brasileira é o resultado de uma angústia racial”. Euclides sofre essa angústia da qual as “leis” européias não dão conta. O Brasil é um país sem seu tipo antropológico definido e ele, Euclides da Cunha, é o primeiro que se propões a fazer um estudo a fundo desses cruzamentos todos que nos formam. Euclides não mascarou a realidade porque não pregou uma falsa igualdade social entre as “raças”, o que seria feito por outros como Oliveira Viana, ou Afonso Celso. Se hoje podemos enxergar mais longe que Euclides é porque somos pigmeus olhando do ombro de gigantes como ele.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CUNHA, Euclides. Os Sertões. 1ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1902.
GALVÃO, Walnice Nogueira. “Os Sertões – Campanha de Canudos : Edição Crítica de”. Ática, 1998, p.14
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 4ª ed. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1983.
SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O Espetáculo das Raças - Cientistas, Instituições e questão racial no Brasil 1870 - 1930 São Paulo, Cia das Letras, 1993.
SKIDEMORE, Thomas E.. O Brasil Visto de Fora, Rio de Janeiro Paz na Terra, 1994.
SEVCENKO, Nicolau. Euclides da Cunha e Lima Barreto: A Literatura como missão, 1900-1920.Tese de doutoramento, departamento de História FFLCH – USP, São Paulo 1981.
VENTURA, Roberto. CANUDOS COMO CIDADE ILETRADA: EUCLIDES DA CUNHA NA URBS MONSTRUOSA. Extraído de: Abdala Jr, Benjamin & Alexandre, Isabel, orgs. Canudos Palavra de Deus Povo da Terra. São Paulo, Editora Senac São Paulo, Boitempo Editorial, 1997. p. 89-99.

SITES
BOSI, Alfredo. A releitura de “Os sertões” hoje . Disponível em . Acesso em: 10/02/2011.
CHAVES, Lázaro Curvêlo. Presidente do Instituto de Pesquisas Sociais Euclides da Cunha. Os sertões, livro vingador de Euclides da Cunha. Disponível em: . Acesso em: 10/02/2011.

GALOTTI, Oswaldo. Os Sertões. CASA DA CULTURA EUCLIDES DA CUNHA. Disponível em: . Acesso em: 10/02/2011.
GUERRA, Rodolpho José Del. Os Sertões – Síntese da Obra. Disponível em: . Acesso em: 10/02/2011.
GUIA DO ESTUDANTE. Revista Abril. Os Sertões. Disponível em: . Acesso em: 10/02/2011.
SILVA, Ana Cristina et al. Euclides da Cunha, Os Sertões e Canudos. Disponível em . Acesso em: 10/02/2011.
PASSEIWEB SEU PORTAL DE ESTUDOS NA INTERNET. Os Sertões, de Euclides da Cunha – Análise da obra. Disponível em: . Acesso em: 10/02/2011.