quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Preguiça? – Só se for o bicho...

Por Jéssica Rangel Pereira

“É preciso ter fogo no coração para que o medo não vença.
É preciso ter fogo no coração para amar e uma vida salvar”

Em um dia qualquer de verão, quando o sol parece tomado de paixão, pintando o céu de vermelho e tornando ardente o calor da tarde, surge um grande incêndio numa floresta, causado por uma bituca de cigarro.
O fogo é tão intenso, que mesmo a quilômetros da cidade a fumaça é vista pela população, despertando a curiosidade de muitos sobre o que estaria ali havendo. O corpo de bombeiros foi chamado e, a princípio, o objetivo era apenas impedir o fogo de se alastrar, já que seria praticamente impossível encontrar alguém ali com vida.
Ao chegarem no local, os bombeiros ficaram estarrecidos com o enorme clarão que se levantava e se expandia em tons crescentes de amarelo-ouro, laranja e púrpura, seguido de ondas cinzentas que formavam um mar de fumaça, dominando o espaço celeste. Um verdadeiro espetáculo a olho nu, jamais presenciado em suas jornadas de trabalho... Como poderia uma luz tão bonita, tão forte, ser a causa de tamanha ruína?
Basicamente a visão dos bombeiros era de destruição, destruição e destruição... O que mais pediam (a Deus ou sabe-se lá a quem...) era que as vidas que ali estivessem pudessem se salvar sozinhas, porque não havia condições de fazer buscas por sobreviventes.
O tempo foi passando e o fogo se acalmando, porém ainda se espalhava pelas extremidades da floresta. Um dos bombeiros, com sua mangueira, mirava o jato de água além do fogo com a esperança de contê-lo. O olhar fixo no fogo da mata. De repente, em meio a toda aquela fumaça, algo se movia em uma árvore. Seu instinto profissional o guiou até lá.
O restante dos homens não conseguiam acreditar no que ele estava fazendo, todos gritavam desesperadamente para que ele voltasse, pois era se arriscar demais naquelas condições. É óbvio que o trabalho de qualquer bombeiro é se arriscar para salvar alguém, mas aquele incêndio... aquele incêndio era indescritível, parecia até que tinha vida própria!
O temerário bombeiro teve de se esforçar muito para chegar perto daquela árvore, já que o calor era incessante. Ao se aproximar um pouco mais, viu que realmente havia algo lá e que precisava de sua ajuda. Naquele instante, o homem estava ali não mais pela profissão que carregava, mas seguindo o pulso de seu coração e o valor que dava à vida.
Com grande esforço e sem hesitar em nenhum momento, o bom bombeiro conseguiu, enfim, resgatar aquela vida que, consciente ou não, lutava para continuar neste mundo.
Os outros bombeiros também agiram com êxito em relação ao fogo: o suficiente para deixar a situação sob controle. Todos eles estavam preocupados com o companheiro de trabalho que tinha adentrado aquele cenário suicida. Para a felicidade geral, avistaram o bombeiro voltando com algo em seu colo. Ao se aproximarem, muitos homens não conseguiam acreditar no que viam: o bombeiro com um bicho-preguiça nos braços!
A maioria ficou questionando o porquê dele ter feito aquilo, arriscar sua vida por conta de um animal... se fosse uma pessoa – que era o que todos esperavam – tudo bem... mas não! Aos ouvidos do nobre bombeiro, as vozes foram sumindo... ensurdeceu-se para as críticas: sentou-se no chão e gentilmente dava água para o bichinho - só o seu bem-estar importava.
Para acabar com todo aquele interrogatório, o bombeiro se levantou, e ainda com o animal em seu colo resolveu dizer: “Ao me tornar bombeiro, fiz o juramento de proteger a vida, o meio ambiente e o patrimônio da sociedade em quaisquer circunstâncias. Ao salvar esse animal nada mais fiz do que honrá-lo. Esse animal tem o direito à vida. Enquanto eu estiver no meu posto de trabalho, seguirei esse lema”.
O silêncio impregnou naquele momento. De tudo poderiam os colegas tê-lo chamado, menos de “bicho-preguiça”... essa certeza ele tinha!



DESCRIÇÃO DA IMAGEM
A inspiração para este texto nasceu de uma foto que mostrava um bombeiro que havia resgatado um bicho-preguiça. Ele segurava o animal no colo e dava água ao bicho com uma garrafa. Ao ver essa imagem eu pude entender a beleza que existe nos atos do ser humano.

Texto semifinalista no 7º Concurso Cultural Ler e Escrever é Preciso Ecofuturo

Devore-me!

Por Maxwell Candido


A visão do rosto dela... Com a fragrância enlouquecedora de comida, focaram nele emoções fortíssimas de ternura e fome, emoções indescritíveis...


Foi assim que os vi nesta cena quase “hollywoodiana”, pareciam esquecer o mundo a sua volta, como se não houvesse ninguém, como se aquele instante fosse o último, assim em meio à metrópole, sem problemas existentes na face da terra.
Ele: traje esporte. Ela: vestido simples, azulado. Ambos se olhavam estendido, por repetidas vezes, com um movimento lateral do rosto, só sendo distraídos por uma barraca de hot-dog, que subitamente entrou na frente dos dois. Ele discretamente deixou-se distrair pelo cheiro inevitável da comida. Estampados em sua face dois únicos desejos: a sua insaciável fome e a vontade de beijá-la... o que falava bem mais alto perante a beleza de sua amada. Os olhos exalavam sua louca vontade de agarrá-la e envolvê-la com seus braços na trama ardente que é o amor... e ao mesmo tempo de acabar de vez com a louca fome que o atormentava.
É assim: a mulher o espera imóvel, como uma mosca aguarda seu fim diante da tão temida aranha. E ele se aproxima... calculando cada movimento... cada passo... cada palavra... Fome! Voltava a lembrar de sua mais primitiva necessidade.
O cheiro do carrinho de hot-dog ao lado subia ao seu nariz como uma sinfonia aos ouvidos de Beethoven, em meio a todas as outras fragrâncias, nem sempre muito aceitáveis, num lance rápido, surge uma idéia, uma chance para a conquista: coloca a mão no bolso, retira em um movimento duas notas ligeiramente amassadas. Um pedido. Uma cena tipicamente americana em meio à metrópole bem mais que brasileira, espremendo-se e lutando por um local mais “livre” dentre a imensa multidão.
“Um completo, por favor!” Disse o rapaz, acenando logo em seguida com a cabeça, pegando seu pedido e indo confiante em direção a ela. Silêncio. Coração acelera. Ele chega perto. As palavras somem; mais um aceno. Na cabeça correm rápido todas as suas estratégias que subitamente somem, desaparecem, mas voltam como um “Dejá vu”.
“Olá?!” Disse ele em direção a ela, que afoita, se embaraçou, e com um jogar de cabelos, respondeu um singelo, porém, belo: “Oi!”. Ambos desconcertados com a presença alheia.
“Eu trouxe para você.” Disse ele entregando-lhe um singelo pão de centeio, cortado em duas fatias, com condimentos e uma imensa e gordurosa salsicha, mas que naquele momento só teria um único significado: Ele a quer, mas será que ela o quer mesmo?.
“Obrigada! Ainda se lembra dos meus gostos.” Disse ela com um sorriso no canto dos lábios. “É. Ainda me lembro bem do seu gosto.” Agora ele quem diz com um malicioso olhar: Fome! ...novamente o seu Eu primitivo o lembrava de sua necessidade. Mas agora ele só pensava em cortejá-la.
“Eu te amo!” Ela disse subitamente, abraçando-o; ele inerte, sem fala, e ainda com fome, balbuciando duas únicas palavras: “Me beije.” Dois desejos saciados em um: foi fatal!
...e assim, da mesma forma que cheguei, vi o movimento da cena: era o ônibus andando, o sinal abriu. Escuto o barulhento som do motor; buzinas; despedia-me daquela cena do “belo amor de momento” – como apelidei – que ia passando lentamente pelos meus olhos, como as nuvens cortam o céu. E fui retornando a minha vida com a cena “shakespeariana” mais brasileira que já vi.



Descrição da imagem

Bairro da Liberdade, o farol fecha. Da janela do ônibus, em meio às minhas distrações, observo um casal que aparentemente se desconhecia. Surpreendo-me com esta bela cena de amor: ele, um pobretão, afoito pela fome, prefere dar de comer a sua amada. Só depois percebi que o sentimento já vinha de longas datas.


Texto semifinalista no 7º Concurso Cultural Ler e Escrever é Preciso Ecofuturo

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

QUEM NÃO PODE COM MANDINGA NÃO CARREGA PATUÁ

Uma antiga expressão diz:
“Quem não pode com mandinga, não carrega patuá”.

Os Mandingas são grupos de africanos do norte que, pela proximidade com os árabes acabaram se tornando muçulmanos, religiosos que tem muitas restrições aos que não aceitam Alá como Deus ou Maomé como o seu profeta.

Com o crescimento do tráfico de escravos, vários negros mandingas vieram parar no continente americano, vítimas da ambição dos brancos. Muitos desses escravos sabiam ler e escrever em árabe. Esse estado superior de cultura desse grupo de negros fez com que fossem rotulados de feiticeiros, passando a expressão mandinga a designar feitiço.

Por outro lado, os negros que praticavam o culto aos Orixás eram vistos como infiéis pelos negros muçulmanos. Os senhores brancos, aproveitando-se dessa rivalidade e confiando aos mandingas funções superiores que aos demais, fazia a animosidade entre eles crescer. Os mandingas não eram obrigados pelos senhores brancos a comer restos de carne de porco e até mesmo permitiam que eles usassem trechos do Alcorão guardados em pequenos invólucros de pele de animais pendurados ao pescoço. Constantemente eram os negros mandingas que acabavam ocupando o lugar de caçadores de escravos fugitivos, recebendo a denominação de “capitães-do-mato”.

Quando um escravo pretendia fugir da senzala, além de se preparar para lutar sem armas através da capoeira e do maculelê, ele passava a usar o cabelo encarapinhado e pendurava ao pescoço um patuá, de modo que pensassem tratar-se de um negro mandinga, para não ser perseguido. Entretanto, se um verdadeiro mandinga o abordasse e ele não soubesse responder em Árabe, o verdadeiro mandinga descarregaria toda a sua violência nesse infeliz negro fugitivo. Assim nasceu a expressão “quem não pode com mandinga não carrega patuá”.

A vingança a quem se atrevesse a portar um falso objeto sagrado pelo muçulmano era algo muito terrível. Com o passar do tempo o hábito de utilizar patuás entre os negros foi se generalizando, pois eles acreditavam que o poder dos mandingas era devido, em grande parte, aos poderes do patuá. Por outro lado, os padres também utilizavam, e ainda utilizam, crucifixos e medalhas, agnus dei, etc., que depois de benzidos, a maioria das pessoas acredita possam trazer proteção aos devotos nelas representados. Na verdade, o uso do talismã perde-se na longa noite do tempo e confunde-se com a própria história do gênero humano.

Nos primeiros candomblés da Bahia era comum o pedido de patuás por parte dos simpatizantes e até mesmo por aqueles que temiam o culto afro, pois se dizia que o patuá poderia até mesmo neutralizar trabalhos de magia negra.

Mas afinal, o que é um patuá? O patuá é um objeto consagrado que traz em si o axé, a força mágica do Orixá, do santo católico ou guia de luz, a quem ele é consagrado.

Entre os católicos já era hábito utilizar um objeto ou fragmento que houvesse pertencido a um santo ou a um papa, até mesmo fragmentos de ossos de um mártir ou lascas de uma suposta cruz que teria sido a da crucificação de Jesus. Até mesmo terra, que era trazida pelos cruzados que voltavam da Terra Santa e que a utilizavam nesses relicários, considerados poderosos amuletos, que deveriam atrair bons fluidos e proteger dos infortúnios. Estes eram chamados de relicários. O nome relicário é originário do latim relicare-religar, que acabou formando a palavra relíquia. Logo o clero percebeu que não poderia impedir o uso dos patuás pelos negros, que os tiravam antes de entrar na igreja, mas voltavam a usá-los ao afastar-se dela. Decidiram, então, substituir os patuás africanos, que traziam trechos do Alcorão, por outro que trazia orações católicas, medalhas sagradas, agnus dei, etc.

Com a formação dos primeiros templos de Umbanda e a possibilidade de um contato mais direto com diversas entidades espirituais, as pessoas que buscavam proteção começaram a encontrar nesses objetos sagrados um apoio (era algo material que continha a força mágica vibratória sempre consigo). A partir de então, as entidades passaram a orientar sua elaboração, indicando quais objetos seriam incluídos na confecção do patuá e como se deveria proceder com eles para que recebessem o seu axé, ou seja, a força mágica.

Na verdade, a procura do patuá ou talismã é feita principalmente por quem se sente inseguro e conseqüentemente necessitado de maior proteção.
Os componentes mais utilizados para a confecção dos patuás são os seguintes: figas de guiné, cavalos marinhos, olho de lobo, estrelas de Salomão, estrelas da guia, cruz de caravaca, couro de lobo, pêlo de lobo, Santo Antonio de Guiné, imagens de Exu e Pomba-Gira, pontos diversos, orações, sementes variadas, imãs, dentes de cavalo, etc.

Não podemos esquecer que esses componentes singelos não têm valor se não forem preparados pelas entidades incorporantes.
Somente estas podem dar o axé do patuá.

publicado no site do terreiro tio antonio
(Pai André de Xangô)